26 Agosto 2023
Mikhail Shishkin esteve no Encontro de Rimini para discutir autoritarismo e democracia com o intelectual americano Shadi Hamid. Ele tem sido uma das vozes mais importantes da dissidência russa há décadas: "Para transformar a Rússia em um sentido democrático, certas condições são necessárias. Primeiro, uma massa crítica de cidadãos que entende o que é democracia e como ela funciona". Recentemente, no entanto, Shishkin parece ter perdido a esperança de uma mudança democrática no país. Ele escreveu que um renascimento do país só pode acontecer "através da destruição total do regime de Putin".
Para transformar a Rússia democraticamente, são necessárias certas condições. Primeiro, uma massa crítica de cidadãos que entende o que é democracia e como ela funciona.
Têm de estar preparados para viver num país governado pelo Estado de direito. Se a maioria vive mentalmente no passado, no reino da Horda Dourada, uma vez que eles têm liberdade, que será percebida como caos, eles vão reconstruir a única vida que conhecem: uma pirâmide de escravos governada pelo Khan.
A entrevista foi publicada por Il Sismógrafo, 24-08-2023.
Foi isso que aconteceu depois do colapso da URSS?
Sim, depois de um período de confusão na década de 1990, os russos reconstruíram os mesmos barracos em que viveram por gerações. Mesmo nos anos mais livres e prósperos, início dos anos 2000, não mais do que 20% dos russos tinham passaporte para ir ao exterior. Agora estamos testemunhando o retorno mais uma vez da estrutura clássica da sociedade da Horda Dourada, na qual todos eram escravos do czar e, portanto, não eram responsáveis por nada. Na Rússia não há realmente propriedade privada: você possui algo apenas enquanto for leal ao seu chefe. Se perder a lealdade, perde tudo (sempre lembramos do oligarca Khodorkovsky).
Isso significa que não basta substituir Putin?
Na Rússia não há poder eleito a partir da base, outra condição necessária em um sistema democrático. Depois que Putin "expirar", o sistema encontrará outra pessoa para substituí-lo. O sistema se reproduz e se perpetua.
A imagem do tirano está agora profundamente impressa.
A questão fundamental dos russos é: este czar é real ou falso? O verdadeiro czar sempre traz força e vitória, aquela fingida fraqueza e derrota. Ainda hoje as pessoas amam Stalin e dedicam monumentos a ele, enquanto Gorbachev é detestado. Putin era amado por seus triunfos, pela "nossa Crimeia", agora ele é odiado porque não vence. O próximo Putin terá que culpar todas as derrotas no anterior e buscar legitimidade não de eleições regulares (a Rússia nunca as teve), mas da vitória sobre os inimigos.
É possível destruir o sistema por dentro?
A maioria das pessoas que queriam construir a democracia na Rússia nos últimos vinte anos foi presa, morta, intimidada ou forçada ao exílio. Milhões de potenciais cidadãos da "bela Rússia do futuro", famoso slogan de Alexei Navalny, deixaram a Rússia.
O Ocidente, desde o início da guerra, tem apoiado militarmente a Ucrânia. Até que ponto acha que o Ocidente tem obrigação de garantir este apoio?
Ao apoiar a Ucrânia contra o regime de Putin, o Ocidente está fazendo o que deve para corrigir o erro que cometeu no passado, quando favoreceu a criação da nova ditadura criminosa na Rússia. Nos anos 90 e 2000 ainda era possível ajudar a jovem democracia russa de uma forma muito simples: mostrando pelo exemplo como funciona a democracia.
Mas o que aconteceu?
Rios de dinheiro sujo fluíram da Rússia para o Ocidente, mostrando que onde há enormes somas de dinheiro em jogo, o Estado de Direito acaba. Sem o apoio direto de bancos ocidentais, advogados, funcionários corruptos, a formação da ditadura russa teria sido impossível. O Ocidente corrupto estava feliz com o dinheiro infinito de Putin e permitiu que o embrião do monstro crescesse em uma verdadeira ditadura totalitária. As democracias ocidentais devem perceber suas falhas na criação da ditadura de Putin. Uma ditadura precisa sempre de inimigos e de guerra. Agora que o Ocidente sofreu esta guerra, deve corrigir seus erros e ajudar a Ucrânia a alcançar a vitória.
Qual é o papel da sociedade russa em tudo isso? Alguns veem os russos como as primeiras vítimas de Putin, outros como cúmplices que não podem ser completamente absolvidos.
A Rússia hoje se assemelha à Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial e em alguns casos as analogias são perfeitas, penso na propaganda de Hitler sobre o grande Reich que se assemelha à de Putin em Russki Mir, Crimeia em vez de Sudetos, ucranianos em vez de judeus. A população alemã foi vítima ou cúmplice do regime nazista? Depois da guerra, os alemães justificaram-se: nada sabíamos, fomos vítimas de Hitler tanto como as outras nações. Tenho certeza de que quando o novo Putin culpar o atual Putin pela derrota, o povo russo se justificará: não sabíamos de nada, pensávamos que estávamos salvando nossos irmãos russos na Ucrânia dos fascistas ucranianos, somos vítimas de Putin.
São cúmplices, então.
Todos aqueles que apoiaram abertamente esta guerra, ou seja, milhões de pessoas, tornaram-se criminosos de guerra. Todos os funcionários públicos, magistrados, professores, reitores de universidades, diretores, diretores de museus e bibliotecas, tiveram que assinar declarações de apoio à guerra. Quem julgará os crimes de guerra? Os próprios criminosos de guerra? Imagine que a tentativa de assassinar Hitler em 1944 havia sido bem-sucedida e os generais alemães assinaram a paz com os Aliados, tendo como condição a desnazificação do país. Os nazistas teriam sido responsáveis pela nazificação. Algo semelhante aguarda a Rússia após a morte de Putin.
Após anos de regressão democrática, parece que a saúde da democracia liberal está melhorando globalmente. Joe Biden disse que o curso está finalmente invertido. Acha que sim?
A democracia não vai e vem como a maré. A democracia é uma estrutura da sociedade que possibilita a luta pela democracia. Numa ditadura, o povo não influencia o governo de forma alguma, enquanto a democracia o faz por meio de eleições. Os políticos devem, de alguma forma, ouvir a opinião pública através dos meios de comunicação. Eu experimentei isso em primeira mão. Há anos venho falando na mídia suíça pedindo um boicote às Olimpíadas de Sochi, à Copa do Mundo de 2018 etc., mas para os suíços era importante demais manter a neutralidade, sua vaca sagrada.
Mesmo no dia da invasão, o presidente da Confederação Suíça disse que permaneceria neutro e não aplicaria sanções. No dia seguinte, estava no programa Arena e disse o que pensava: a era da neutralidade acabou. Aparentemente, minhas palavras tiveram peso, porque no dia seguinte o presidente anunciou que a Suíça imporia sanções. Foi uma grande vitória pessoal para mim. É assim que funciona a democracia: temos de lutar, cada um como pode.
A invasão reuniu o Ocidente, mas também afastou o sul global, que tende a ficar do lado da Rússia. A cúpula do Brics dos últimos dias mostrou isso mais uma vez. Em essência: a maior parte da humanidade está com Putin. Como o senhor interpreta esse fato?
Por que Putin é tão amado no mundo? Não só porque ele sinceramente odeia o que muitos no mundo odeiam, mas também porque ele fala abertamente sobre seu ódio.
Esse ódio está sempre lá: ódio pela OTAN, pela América, pelos direitos, pelo casamento gay, pelo "politicamente correto" e assim por diante. O mundo sempre viverá por este princípio: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Depois de Putin, mais alguns políticos internacionais tomarão seu lugar. Putin não é uma pessoa, ele é um ator. Quando ele falhar em sua atuação, outro ator será escalado.
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O dissidente Shishkin: “O regime de Putin também é culpa do Ocidente” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU